Declaração do Porto: reparar o irreparável

7 de julho de 2023

A escravatura, a colonização, o genocídio e o etnocídio de populações nativas em África, na Abya Yala e na Ásia, a racialização e a exploração de povos e corpos-territórios humanos e não humanos, constituem os maiores crimes cometidos contra as nossas humanidades. Desde o século XV, milhões de pessoas foram sequestradas, escravizadas, violadas e submetidas às mais variadas formas de desumanização, em função de um projeto colonialista, forjado numa ideia perversa de civilização.

Portugal foi pioneiro nesse bárbaro empreendimento de acumulação de capital baseado em práticas genocidas e escravocratas, tendo deslocado quase 6 milhões de pessoas dos 12,500 milhões de registos. Foi o último país da Europa a abolir a escravatura, em 1869, mantendo a prática do trabalho forçado até aos anos 1960 do século XX. Foi ainda a última potência colonial a reconhecer as independências dos territórios ocupados. Se, de facto, o 25 de Abril fechou as portas ao fascismo salazarista, várias janelas ficaram escancaradas e, através delas, os saudosistas vão reavivando a sua memória colonial e (re)inscrevendo-a no espaço público. Portugal não se descolonizou. Apesar dos 50 anos de democracia e da contestação ao discurso de glorificação do passado, este mantém-se ainda o oficial e dominante. É indispensável reconhecer a dívida histórica para com pessoas negras, ciganas/roma e indígenas, para potenciar um debate, efetivo e honesto, sobre políticas de reparação. 

Nas definições da palavra reparar, encontramos: retocar, consertar, restaurar, indemnizar, restabelecer e compensar. Porque a colonialidade não é uma mera condição, mas um estado de espírito e de coisas, acreditamos que nenhuma dessas palavras, ou qualquer outra da gramática colonial da língua portuguesa, traduz a dimensão ou sequer sugere o que designamos por reparação, no que toca a tais acontecimentos irreparáveis para a vida e a dignidade desses povos. Ainda assim, para além de qualquer conceptualização, consideramos urgente implementar políticas e práticas efetivas de reparação nas suas várias dimensões, inclusive simbólicas.

Nesse sentido, e na continuidade das reivindicações históricas das organizações e movimentos de (e em) luta, exigimos ao Estado Português: 

1. Reconhecimento do COLONIALISMO, da ESCRAVATURA, dos MASSACRES COLONIAIS, do TRABALHO FORÇADO, da negligência às FOMES, das PRÁTICAS GENOCIDAS, ETNOCIDAS, SEGREGACIONISTAS e EPISTEMICIDAS enquanto crimes contra a humanidade e, consequentemente, a formalização de pedidos de desculpas.

2. Anulação de todas as dívidas (odiosas, injustas, ilegais e/ou imorais) contraídas pelos países ocupados e colonizados por Portugal e o pagamento de indemnizações às pessoas lesadas pelo colonialismo, por exemplo, entre outros, aos ex-contratados de São Tomé e seus descendentes. 

3. Implementação de políticas públicas afirmativas, transversais, de combate à desigualdade racial e ao racismo estrutural através da mobilização de recursos financeiros consequentes, via Orçamento de Estado, em áreas-chave para a equidade social – educação, emprego, habitação, saúde, justiça,  transportes, cultura – envolvendo diretamente as pessoas racializadas e as suas organizações na definição, elaboração e execução de políticas públicas. Para tal, é fundamental a urgente recolha de dados étnico-raciais.

4. Adopção e plena implementação do princípio jus soli, atribuindo a nacionalidade portuguesa a todas as pessoas que nasceram e nascem em Portugal.

5. Desburocratização dos processos de pedido de vistos, livre circulação e garantia dos direitos de cidadania para os imigrantes dos países que foram colonizados por Portugal.

6. Criminalização do racismo, com condenação efetiva, para as pessoas acusadas e indemnização financeira para as vítimas. 

7. Desinvestimento nas prisões e no policiamento racista e repressivo, com canalização de recursos financeiros diretamente para as comunidades mais marginalizadas, de modo a apoiar o seu fortalecimento, investindo, com vigor, em áreas fundamentais como educação, saúde, habitação e emprego. Implementação de medidas políticas estruturais, não reformistas, que tenham por horizonte a abolição das prisões e a adoção de políticas sociais baseadas numa justiça retributiva e restaurativa.    

8. Instituição de uma Carta de Princípios Anti-Racistas e formação em literacia étnico-racial, em todas as áreas da função pública e do sector privado de prestação de bens e serviços, nomeadamente no âmbito da educação básica. 

9. Descolonização dos manuais escolares, designadamente no que toca ao colonialismo português, com introdução no programa de ensino da história de África, do Brasil e da presença negra e cigana/roma em Portugal numa perspectiva não-eurocêntrica, submetendo-os à apreciação de uma comissão formada por pessoas e organizações racializadas e antirracistas.

10. Reconhecimento do papel dos Movimentos de Libertação Africanos no 25 de Abril de 1974.

11. Isenção de propinas para alunos provenientes dos países e territórios colonizados por Portugal.

12. Restituição às comunidades colonizadas, e sem prejuízo de condições financeiras ou de outra natureza, dos objetos, arquivos, artefatos e corpos humanos presentes nas instituições de cariz museológico. Disponibilização de recursos financeiros e outros, de acordo com as demandas dessas comunidades, no apoio às infraestruturas para receber e ativar objetos, arquivos, obras e criação de uma plataforma de encontros para troca de ideias sobre restituições e responsabilidades coletivas com a participação ativa das comunidades.

13. Desmantelamento de estátuas e de monumentos racistas, e contextualização das sequelas do passado colonial. Desenvolvimento de políticas públicas de (sobre e para) a memória que destituam o imaginário colonial e, simultaneamente, identifiquem e inscrevam as pessoas e narrativas não-brancas ausentes do imaginário coletivo.

14. Construção do Memorial de Homenagem às Pessoas Escravizadas, um dos projetos mais votados no Orçamento Participativo do Município de Lisboa de 2017 e consecutivamente adiado. Discussão na Assembleia da República sobre a memorialização das vítimas da escravatura e do colonialismo como um projeto abrangente a nível nacional. 

15. Total transparência no que diz respeito aos restos mortais das 158 pessoas encontradas no Valle da Gafaria, em Lagos, atualmente a cargo de uma empresa privada em Coimbra. A sua transladação e enterro, bem como a digna memorialização do local (hoje um parque de estacionamento com um mini-golfe no topo) como o mais antigo cemitério de pessoas escravizadas no mundo e em diálogo com o Núcleo Museológico Rota da Escravatura.

16. Reconhecimento e inscrição da figura de Amílcar Cabral no espaço público como um dos precursores da democracia em Portugal.

17. Descolonização do hino e de todos os símbolos nacionais que evoquem a exaltação do passado colonial.   

18. Reconhecimento do cabo-verdiano e do guineense enquanto línguas nacionais, à semelhança do mirandês, e difusão da diversidade linguística que habita o país, através da promoção de políticas públicas do seu ensino. 

19. Implementação da data de 10 de Junho como o dia de Alcindo Monteiro e de todas as vítimas de racismo e de xenofobia em Portugal. 

20. Políticas de reparação de biomas e de paisagens, apoiando as comunidades dilaceradas pelo extrativismo e pela monocultura intensiva e superintensiva, em Portugal e nos países que foram colonizados por Portugal.

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Entendemos que reparar tem necessariamente de provocar uma ruptura radical com o sistema colonial e capitalista cujo brutalismo e política de morte assombra ainda os futuros dos nossos povos.

Acreditamos que Portugal, tal como toda a Europa, é estruturalmente racista e colonialista. 

Sabemos que os crimes cometidos pelo colonialismo são não só indefensáveis como irreparáveis. Entendemos, no entanto, que a reparação é um imperativo, o único caminho possível para um sentimento de justiça com os nossos ancestrais e para a construção de presentes e de futuros mais dignos e mais justos. 

Inscrevendo-se numa constelação histórica por reparações, tão antiga quanto o colonialismo e a escravatura, e tendo nascido de um contexto específico para acomodar distintas vontades e realidades sócio-políticas, a Declaração do Porto: Reparar o Irreparável será sempre um documento inacabado e, por isso mesmo, nele não se encerra.  

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As/os participantes da Oficina de Reparações (entre 23 de junho e 6 de julho de 2023): 

Ana Cristina Pereira/Kitty Furtado, Aline Frazão, Apolo de Carvalho, Gessica Correia Borges, Inês Beleza Barreiros, Mamadou Ba, Marta Lança, Pirá/Ellen Lima Wassu, Sara Henriques, Tomé Silva

imagem de Vanessa Fernandes.

Assinaturas:

  1. Acksana Silva, socióloga
    Afrolis
    Allex Miranda, ator, dramaturgo, roteirista
    Allex Miranda, ator, dramaturgo, roteirista
    Ana Balona de Oliveira, historiadora da arte e curadora
    Ana Maria Garcia Nolasco da Silva, professora de arte
    Ana Rita Alves, antropóloga
    Ana Rita Oliveira, Antropóloga e intérprete médica
    André Castro Soares, antropólogo
    André Studer Ferreira/ Advogado
    Anizabela Amaral - Jurista e ativista
    António Serzedelo, professor aposentado
    António Vaz
    Associação BUALA
    Bandeiras da Boba
    Bárbara Barbosa - Secretária Executiva
    Bia Lacerda + Socióloga
    Bruno Caracol, artista
    Cat Martins/ Docente Fbaup
    Catarina Laranjeiro, investigadora
    Catarina Vieitas, professora
    César Schofield Cardoso, artista caboverdiano
    Coletivo Quilombo - Porto
    Coletivo Quilombo - Porto
    Crislene Brito /Psicóloga
    Cristina Roldão, socióloga
    Diogo Bento, artista e docente universitário
    Djuzé Neves, Batoto Yetu Portugal
    Dori Nigro, performer e educador
    Dusty Whistles, artista, ativista
    Filipa César, artista e investigadora
    Flavio Fernández/ Professor
    Fradique Bastos, cineasta
    Gabriela Rodrigues de Oliveira Barbosa /cabeleireira
    Gisela Casimiro, escritora e artista
    Grupo EducAR - Educação Anti-racista
    Grupo EducAR - Educação Anti-racista
    Hitler Jessy Tshikonde “Samussuku”, estudante e activista cívico
    Ilda Vaz, artista, compositora, batucadeira
    Iolanda Évora, investigadora, professora
    Isabel Macedo / Investigadora
    Isabelle Euclides, trancista
    Janine Brandão, pesquisadora
    Jessica Bruno, professora, ativista
    Jô Kalagary, artista
    João Branco, encenador, professor de teatro e investigador
    Jonathan da Costa, comunicador e mediador cultural
    Jorge Louraço Figueira, dramaturgo
    José Augusto Pereira, historiador
    José Falcão, ativista antirracista
    José Pina Baessa, dinamizador cultural
    José Rui Rosário, músico e poeta
    Josina Almeida, historiadora da arte
    Joyce Fernanda Vieira / Publicitaria
    Leopoldina Fekayamãle, professora e ativista angolana
    Lúcia Furtado, Femafro
    Luís Camanho, designer
    Maíra Zenún, artista visual, pesquisadora e poeta
    Mamadou Ba, ativista SOS Racismo
    Margarida Vale de Gato, professora, poeta e ativista
    Maria Clara Lima / estudante universitária
    Maria do Carmo Piçarra, investigadora
    Maria João Leite/ Prod. Cultural
    Marta Pinto Machado, investigadora IHC - NOVA FCSH/IN2PAST e fotógrafa
    Michele Mara/cantora e musicoterapeuta
    Miguel Gullander, escritor e professor
    Myriam Taylor de Carvalho, empreendedora de impacto social
    Nêga Filmes
    Ntaluma, escultor makonde
    Nuno Coelho / Designer, artista, curador, professor universitário e investigador
    Nuno Milagre, técnico de cinema
    Olívio Pereira, diretor comercial
    Patrícia Freire _ Produção | Programação
    Patrícia Martins Marcos, historiadora
    Paula Cardoso, jornalista
    Paulo Gamelas / Gestor
    Paulo Moreira / Investigador
    Pê Feijó, escritora
    Pedro Antunes, antropólogo
    Pedro Schacht Pereira, professor universitário
    Pedro Varela (Antropólogo)
    Pedro Varela, investigador
    Priscilla Domingos / Psicóloga
    Rafael Alves Campos - doutorando faculdade de belas artes universidade do Porto
    Raquel Lima, poeta, arte-educadora e investigadora
    Raquel Oliveira da Silva/ Estudante
    Raquel Schefer, investigadora
    Rede Afrolink
    Rita Brás, documentarista
    Rita Cássia, antropóloga e artista
    Rita Fevereiro, professora de artes visuais
    Rui Gomes Coelho, arqueólogo
    Rui Rodrigues, escultor, artista plástico
    Salomé Honório, escritora e investigadora
    Sandra Urceira / Anti-Racista
    Sara Simões, arqueóloga
    Sheila Khan, investigadora
    Sheila Khan/ Investigadora e Docente
    Sílvia Roque / Professora e investigadora
    Sofia Afonso Lopes, doutoranda em História
    SOS Racismo, associação antirracista
    Sumaila Jaló, estudante de ensino superior e activista
    Tiago Vieira da Silva, investigador e professor
    Titos Pelembe / Artista multidisciplinar e curador
    Tomásio Mendes Costa, licenciado em Estudos Africanos
    Tradutor
    Vanessa Fernandes - realizadora / artista
    Vania Puma Andrade, educadora, poeta e performer
    Víctor Barros, investigador
    Victor Hugo Lopes, restaurador de filmes
    Winnie Silveira / Engenheira
    Xana Piteira, Orla Design
    Helder M. Da Costa Pires Pereira/ Arquiteto
    Noemi Alfieri - Investigadora, Poeta
    Camila do Valle, Professora Literaturas de Língua Portuguesa e Literatura da Amazônia na UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

por várias
Mukanda | 21 Julho 2023 | oficina das reparações